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sexta-feira, agosto 31, 2007
Da Caros Amigos

A TV que não ensina a morrer

por Marilene Felinto

Por que que a droga da TV – do jornal e da revista – não aproveitou a desgraça com o avião da TAM no aeroporto de Congonhas, em São Paulo, a bola de fogo, o arrebatamento dos instantes, a fatalidade, a impotência humana sobre o tempo e o mistério, para tratar da efemeridade da vida?

Por que a droga da TV – do jornal e da revista – não aproveitou para lembrar ao espectador que amanhã... morre-se. Simples: amanhã, morre-se. Amanhã: é fogo-fátuo. A hora era de filosofia, de meditação, não de politicagem oportunista, não de espetacularização da dor alheia, não de exploração de emoções baratas.

Não teria sido melhor, menos desonesto e sórdido do que ficar tentando achar pêlo em casca de ovo para tentar derrubar (pela enésima vez) o governo Lula? Ora, o governo Lula é o melhor governo que o Brasil já teve, desde que eu me entendo por gente neste quase meio século da minha existência estúpida. Só os ricos não acham isso – a classe dominante, que segue mantendo sua “relação incestuosa” (Fábio Lucas) com a mídia rasteira.

Por que a merda da TV não eleva o nível, não ajuda o povo a filosofar, a se entender a si mesmo e ao enigma do tempo, da origem e da morte? No caso do desastre do avião, bastava terem usado o formato “quiz show” (programa de testes). Eles não adoram show, espetáculo? Adivinhação: O que foi que se perguntaram, no último segundo, as pessoas naquele avião (se é que se perguntaram algo), senão: “Que é isto que eu sei sem que ninguém me tenha perguntado, mas que, se eu quiser explicar a quem me perguntar, eu não sei? A resposta é: o Tempo.” (Santo Agostinho, citado por Husserl – Edmund Husserl. Lições para uma fenomenologia da consciência íntima do tempo).

É preciso, com urgência, matar, isso sim, esta imprensa, esta mídia da indústria cultural – esta que se manifesta mesmo é na manipulação dos conteúdos, que procede à mais devastadora despolitização da sociedade; esta que, no lugar de promover a formação e a participação política, opta pela imposição do consumo de espetáculos pré-fabricados (Fábio Lucas). O que virou a tragédia do avião da TAM senão um showzinho para o “Fantástico” da Globo? É preciso acabar com a Globo, com o jornal “O Globo”, com a “Folha de S. Paulo”, o “Estado de S. Paulo”, a Rede Bandeirantes e outros lixos como eles se apresentam hoje.

Bastava a TV ter lembrado ao telespectador que é preciso lembrar-se de que o amanhã não existe! Outro dia mesmo morreu mais um aparentado meu em Pernambuco, Recife, aonde minha infância vai assim escorrendo feito areia fina por entre os dedos – e eu, aos choros, não consigo retê-la, detê-la, senão num punhado ralo, grãos que brilham e rebrilham na insistência da memória, apenas. Mas o resto (o material mesmo, os corpos, as caras, os cheiros das gentes da minha infância) escorre e vira pó – os velhos que vão morrendo, os parentes, os aparentados, os conhecidos. Eu mesma que sigo morrendo.


Outro dia entrei num sebo aqui em São Paulo, cujo dono me conhece. Ele (um rapaz de uns

vinte e cinco anos) veio surgindo do fundo da loja, emergindo de entre pilhas e mais pilhas de livros velhos amarelados, enrugados, organizados meio sem ordem, e foi dizendo: “olha, hoje entrou um livro seu! (e citou o nome). Aliás, ontem entrou outro em que o prefácio é seu! E tem outro aqui (retirando o exemplar da prateleira e me mostrando) em que a revisão é sua!” Abri uma gargalhada diante do jovem de cara boa, bonita, risonha, metade da minha idade: “quer dizer que já virei mesmo objeto de museu, não é não?!”. Ele respondeu que aquilo, na verdade, era sinal de consagração. “Consagração, não. Esquecimento”, corrigi. “Tudo o que eu quero – esquecimento”, acrescentei.

A mim, afinal, não me interessa mais a publicação de livros. Hoje eu só escrevo para mim mesma – e não há maior sensação de liberdade do que esta. Esta sensação de estar fora do sistema, de não ser refém nem do “mercado” nem da mídia podre. E eu só escrevo para ter contato com o outro tempo, o que a TV não mostra. Há outro tempo que a TV não mostra (é preciso, com urgência, matar a TV, a imprensa escrita etc.). Meu tempo não corresponde à marcação das horas, minutos e segundos, no relógio, disposto em dias, semanas, meses, anos, estações, ciclos lunares etc. Meu tempo é interior: ele desobedece ao relógio, flui dentro das personagens, como um eterno presente, um tempo-duração (Bergson), sem começo, nem meio, nem fim. (Massaud Moisés):

“Dir-se-ia que o fim último, consciente ou não, de qualquer narrador consiste em criar o tempo. (...) Criando o tempo, o homem nutre a sensação de superar a brevidade da existência, e de identificar-se, demiurgicamente, com o tempo cósmico, que permanece para sempre, indiferente à finitude da vida humana; gerando o tempo, o ficcionista alimenta a ilusão de imobilizá-lo ou de transcendê-lo.”

Marilene Felinto é escritora
marilenefelinto@carosamigos.com.br
Fabrício Muriana | 12:25  | 0 comentários